Casa de Agonia denuncia o uso da hierarquia e da disciplina, bases sagradas do militarismo, como ferramentas de opressão que satisfazem os caprichos de chefes autoritários na Marinha do Brasil. Continue lendo “Casa de Agonia: A rotina na Marinha do Brasil”
O primeiro vício que o Rosário destruiu em mim
Nossa Senhora fez 15 promessas a quem rezar o Rosário. Faz menos de quatro meses que comecei a rezar e já percebi mudanças em mim. Na terceira promessa ela disse:
– Os devotos do meu Rosário serão dotados de uma armadura poderosa contra o inferno, pois conseguirão destruir o vício, o pecado e as heresias.
Eu bebi toda semana por mais de 15 anos. Nunca havia conseguido dar uma pausa nesse longo período. Pelo contrário, frequentemente bebia nos fins de semana e nos dias úteis também. Começava a beber na quarta ou na terça e só parava no domingo. Se, por algum motivo, eu tivesse passado a semana muito ocupado, antes do domingo terminar eu abria a geladeira pra pegar umazinha. A segunda-feira não podia chegar sem eu beber, era uma obrigação.
Já caí na rua, sem conseguir abrir a porta de casa, depois de beber. Só levantei com ajuda. Já dirigi depois de beber, colocando minha família e outras pessoas em risco. Já abri a porta do guarda-roupa, pensando que era a porta do banheiro, e mijei. Uma vez tomei banho na caixa d’água do vizinho. Está claro que eu abusava do álcool e que ele tinha enorme importância na minha vida.
Eu não conseguia imaginar comemoração sem bebida. Faz mais de um mês que não bebo nenhuma gota. Passei meu aniversário sem beber. Brindei com água gelada e estava gostosa demais. Pela primeira vez comemorei o aniversário do meu filho sem tomar cerveja, ele fez 12 anos. Isso é estranho. Por que nem um ano sequer sem bebida alcoólica? Porque eu era tão apaixonado por ela que não queria me afastar dela em nenhum dos momentos marcantes da minha vida. Nunca, jamais, por pelo menos uma década e meia. O álcool não merece tanto espaço assim.
Eu bebia pra relaxar, curtir, me sentir confiante. Depois do carnaval, decidi não beber durante a Quaresma. Não afirmo que todo mundo que bebe é viciado e deveria tentar parar, mas, eu escolhi evitar aquilo que faz de mim uma pessoa pior. Aquilo que eu não conseguia viver sem usar. Com a graça de Deus, estou conseguindo. O relaxamento, a força, alegria e confiança vêm de outra fonte agora: do Rosário da Virgem Maria. Através desta oração, Deus nos transforma com tanta profundidade que, de repente, descobrimos que nascemos de novo.
São Gonçalo, levante a cabeça
Foto: @romarioregis
São Gonçalo perdeu tudo de novo. Soterrada, perdeu a vida antes de conseguir salvar seus filhos, cobertos de lama e escombros da casa onde moravam. Contaminada por leptospirose, lutou por dias no hospital, mas não resistiu ao abandono de quem deveria cuidar dela. Móveis encharcados, eletrodomésticos e objetos estimados foram pro lixo. Documentos de identificação desapareceram nas águas, São Gonçalo ficou sem o pouco de dignidade que tinha. Nada do que sonhou será realizado, por mais nobre que tenha sido sua intenção. Ela não ajudará mais no sustento da própria mãe, que segue desolada. Diante de um trauma tão grande, maior a cada ano, qualquer alegria ou orgulho deixa de fazer sentido até restar apenas um caminho. São Gonçalo, levante a cabeça.
A dor não vai sumir. O pior é que ninguém ficará surpreso se a tragédia se repetir esta noite. Mas, ela precisa ser vencida logo. Você não pode continuar sofrendo, chorando e morrendo chuva após chuva. É urgente lutar de cabeça erguida, afinal, não há um bueiro no município inteiro que funcione perfeitamente. Os altos índices pluviométricos causam muito mais estrago porque encontram uma cidade historicamente despreparada, que não planeja soluções para enfrentar a realidade, onde o atual governo age de maneira “negligente”, afirmou o vereador Romario Regis.
Não há casos isolados de enchentes. A cidade alagou, causando problemas gravíssimos nos bairros de Neves, Boa Vista, Barro Vermelho, Vila Lage, Paraíso, Alcântara, Jardim Catarina, Engenho do Roçado, Rocha, Lindo Parque, Pita, Rio do Ouro, Arsenal, Santa Catarina, Engenho Pequeno, Covanca e diversos outros. Ao invés de mostrar uma fragilidade imutável, essa calamidade representa o tamanho da injustiça que o povo carrega nas costas.
Injustiça cuja reparação pode começar agora, dentro da mente e do coração gonçalenses. Deixe o medo de lado. Se a esperança no futuro municipal for confiada a quem, no passado, era motivo de pavor, continuaremos humilhados por muitos e muitos anos. Lembre-se dos seus momentos de alegria. Da cafifa cortando um pião no alto. Do bate-papo na calçada entre vizinhos, das amigas brincando de boneca na varanda. Recupere a lembrança do carrinho de rolimã descendo o morro e do jogo de futebol no campinho de várzea. Levante a cabeça, São Gonçalo, e com seu espírito criativo, simples e forte, ajude a quem precisa para construirmos uma nova cidade.
No ônibus, esperando a água baixar
Olhei pela janela e vi o trânsito parado. A fila de veículos ocupava toda a Estrada dos Menezes porque o centro de Alcântara estava alagado, os motoristas buscavam outro caminho para chegar em casa. Lotado, um ônibus pro Jockey travou bem embaixo da minha janela, já eram quase 11 horas da noite.
Dentro do ônibus ninguém se mexia. Cada passageiro tinha virado a cabeça prum lado e permanecido assim, naquela posição estranha: olhando pra fora sem ver nada além do próprio interior. Tão imóveis quanto os veículos ao longo da estrada.
A expressão idêntica dos passageiros dizia que dentro deles o sentimento era o mesmo. Além de tristeza, revolta, cansaço e medo do que encontrariam quando chegassem em casa. Todos os móveis, eletrodomésticos e talvez até seus filhos submersos, como encontrou o escritor Erick Bernardes, morador do bairro Lindo Parque. Felizmente a família de Erick sobreviveu.
Resolvi focar num rosto, um homem com o queixo apoiado na mão direita. Só Deus sabe há quanto tempo ele estava no ônibus. Não é normal coletivo cheio tão tarde da noite, como na hora do rush, com estudantes e trabalhadores uniformizados. Pardo, cabelo baixinho, magro, barba por fazer e olhos brilhando muito, vi mesmo distante. Não sabia, mas o desespero também faz os olhos brilharem, acho que pela concentração de lágrimas que podem desabar a qualquer momento.
De pé, cansei de observar o homem. Nenhum veículo avançava e do Alcântara ao Jockey ainda havia um longo caminho com inúmeros pontos de alagamento. A mão dele em nenhum momento cansou. Esperei um pouco mais, numa espécie de desafio doentio da minha parte, e o homem não se mexia nem pra mudar levemente de posição. Esperando a água baixar, o ônibus inteiro continuava em estado de choque com o quanto São Gonçalo é vulnerável. E como sua fragilidade, meticulosamente planeja e construída, provoca sofrimento em pessoas inocentes, que nunca fizeram mal a ninguém e jamais foram citadas em comissões parlamentares de inquérito.
Bairros inteiros, como Neves, tradicionalmente alagam a cada chuva e continuarão alagando porque não há projeto para impedir a tragédia. Também só Deus pode informar a hora que os passageiros do Jockey, vindo lá do Fórum, chegaram em casa. Se abraçaram suas famílias antes de dormir ou se passaram a noite acordados com medo da água e da lama.