A alegria foi assassinada no Rio de Janeiro

A alegria abandonou o Rio de Janeiro

A menor alegria de viver desapareceu completamente do Rio de Janeiro desde que seres humanos em formação se tornaram alvos frequentes de armas de fogo. A chance de se tornar um cidadão pleno de direitos e deveres pode ser eliminada a tiros bem antes da maturidade – enquanto adolescente frequentando a escola, durante a infância dentro de casa, ou ainda no útero materno.

No momento Arthur está paraplégico. A bala que entrou na barriga de Claudineia, dia 30 de junho, bateu de raspão no crânio do feto, lacerou a orelha dele, atingiu o ombro direito, fraturou a clavícula, entrou no tórax, explodiu a terceira vértebra, fraturou a quarta, atravessou o pulmão esquerdo e saiu.

Quatro dias depois do ataque contra Arthur e Claudineia na Favela do Lixão, em Duque de Caxias, Vanessa Vitória, 10 anos de idade, foi assassinada com um tiro de fuzil na cabeça, em casa, na favela Camarista Méier, zona norte da cidade do Rio. Em menos de 24 horas, Samara, de 14 anos, foi atingida nas costas dentro do Colégio Estadual Ricarda Leon, em Belford Roxo. Seus amigos de turma entraram em desespero. Segundo a assessoria de imprensa do Hospital Geral de Nova Iguaçu, para onde Samara foi levada, ela passa bem. Ao todo vinte e duas crianças foram assassinadas no Estado do Rio nos últimos dois anos e meio, de acordo com levantamento da ONG Rio de Paz.

Pessoas ainda se casam, bebês nascem, jovens vão aos bailes funks e os casais namoram. Antes do sol nascer, a manicure sai de casa e desce o morro para trabalhar. O empresário se desloca de carro, de um sinal de trânsito a outro. Absolutamente ninguém, entretanto, esquece o medo de ser assaltado ou de tomar um tiro. A insegurança abala o sentido de sociedade fluminense.

Com o aumento da violência sobre as crianças – mais da metade dos assassinatos infantis na última década ocorreram a partir de 2015 – o Rio de Janeiro do futuro será ainda mais parecido com um prisioneiro assustado e oprimido em cativeiro.

Adultos são roubados duas vezes em cinco dias e depois assassinados, como a enfermeira Érica, em São João de Meriti. Pais de família são assassinados no exercício do dever, como o segurança Weverton, de São Gonçalo.

Carlos Henrique, eletricista de 59 anos, foi atingido e morto ontem quando organizava uma festa caipira no Morro de São Carlos. Há 20 anos a festa acontecia graças ao seu organizador. Ninguém mais pensa em se divertir na comunidade. Até o Carnaval o Estado, representado pelo prefeito Marcelo Crivella, quer destruir.

Pezão afirmou que do Governo Federal prefere receber dinheiro, em vez do apoio do Exército. Ora, o Rio precisa de ambos. Quanto tempo é necessário para restabelecer o direito de ir e vir? Nenhum especialista em segurança pública pode responder. Não há separação entre moradias, escolas e a violência extrema.

Que o caminho continua sendo igualdade social e desenvolvimento humano, todos sabem. Ninguém decide resolver o abismo social do Rio. Sabíamos que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) não passavam de um brinquedo fantástico com data para quebrar. O governo estadual empurrou a sujeira para debaixo do tapete, embora a Secretaria de Segurança Pública tenha defendido outras frentes de atuação além da policial.

Divulgadas em intensas campanhas de marketing, a maioria da juventude não seria impactada por duas ou três quadras de esportes construídas em algumas favelas, nem por reduzidas obras de saneamento básico em pontos estratégicos.

As UPPs servem agora para bandidos praticarem mira. Policiais morrem tentando defendê-las. O que o Estado faz com esses homens e mulheres fardados é a mesma crueldade contra o restante dos fluminenses. São jogados em uma guerra urbana que não deve a nenhuma outra no Oriente Médio. A nossa persiste por falta de vergonha na cara, não por disputa política ou religiosa armada. A administração pública serviu à corrupção em primeiro lugar, não ao desenvolvimento.

As paredes onde moram as maiores vítimas da violência estão caindo aos pedaços. O chão das casas é frio, cru, feito de barro. Elas enfrentam horas de engarrafamento para sair da favela, da Baixada e da Região Metropolitana para servir ao patrão na Zonal Sul e no Centro da Capital. Pulando bocas de fumo, se escondendo contra tiroteios, apanhando da polícia, chegam em casa tarde, mal veem os filhos. Até que um dia são brutalmente assassinadas.

A bala é chamada de perdida mas sua trajetória é clara. Ela nasce do desprezo dos poderosos pelo povo, passa pelas pontes improvisadas sobre o esgoto a céu aberto, pelos corredores estreitos, atravessa as paredes mofadas dos barracos e atinge a cabeça dos pobres antes de nascerem.

Deixe uma resposta