No início de uma tarde de sol forte, sem vento, fui à cozinha pra lavar a louça suja na pia e vi da janela uma pipa querendo voar. Um bracinho magro, negro, saindo de uma varanda incompleta, só de tijolo, ajudava a raia verde a ganhar altura. Ela caia, batia de bico no telhado do vizinho, fazia um barulhão, o menino puxava a linha e tentava colocar no alto de novo. Uma tentativa atrás da outra, com o sol cada vez mais forte. Quando as férias escolares chegam, a pipa é a maior alegria de Marco André.
Marco tem uns 9 anos e mora com a avó e dois irmãos menores. A mãe dele desapareceu há alguns anos, o pai, ele nunca conheceu. Como em geral acontece com as famílias gonçalenses, a baixa renda familiar impõe restrições materiais, mas nada que afete a vontade de Marco ser feliz na vida.
A linha dele é cheia de emendas. Marco é um dos poucos garotos do bairro que ainda usa latas de alumínio para enrolar a linha, a maioria compra carretilhas de plástico. Ele cata os pedaços de linha do chão e vai dando nós até que tenha o suficiente para colocar uma pipa no alto. Para conseguir uma pipa, Marco passa a tarde na rua vigiando, geralmente descalço e sem camisa, olhando para o céu. Quando alguém perde um tora e a pipa começa a cair do alto, Marco corre atrás para buscar como se sua vida dependesse daquele objeto tão simples e frágil. Quase sempre os garotos maiores o empurram ou tomam a pipa da mão dele. Marco não chora. Ele se afasta do local conversando sobre outro assunto qualquer, disfarça a derrota, demonstra que a injustiça não o afetou. Marco conhece problemas maiores.
Se uma brisa surgir e a pipa subir um pouquinho, Marco aproveita e grita da varanda:
– Pode vir, meu pato! Vem, vem! Vou cortar na mão.
A audácia de Marco André, que não abaixa a cabeça diante dos ataques do mundo, assusta as pessoas comuns. Chamam ele de abusado, mal criado. Dizem que Marco se aproveita das suas carências para se fazer de coitado na frente dos adultos. Acusam uma criança tentando ser feliz, de menos de 10 anos de idade, como se ela não tivesse sofrimento suficiente.
Marco responde com mais ousadia e força. Exibindo passos de funk nas festas tão complexos que poderiam embolar as pernas de alguém desprevenido. Descendo rápido o morro de bicicleta, enquanto grita imitando uma ambulância. E quando começam o tempo de pipa e as férias escolares, toda vida de Marco para. Com vento ou sem vento, a pipa se torna a única alegria dele.