Assumo minha condição de favelado

Assumo minha condição de favelado

Cada brasileiro mora em um país doente de exclusão social e má distribuição de renda. Sem assumir isso com vontade de mudança não se constrói um país melhor. Chega de barracos de tábua e casas sem reboco. Metade da população não conta nem com saneamento básico (G1). Não sou o primeiro, mas não quero ser o último a assumir: reconheço minha condição de favelado.

Nasci em 1982 na Favela do Fumacê, em Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro. Meus amigos de infância viraram donos de bocas de fumo e foram assassinados. Na pracinha onde aprendi a andar de bicicleta, cabeças eram arrancadas com espada ninja antes da instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora, projeto agora fracassado. Brincava de futebol em frente à lixeira do meu prédio. O lixo transbordava e invadia a área de uso comum. Me acompanham o cheiro e a textura do lixo misturado com a água da chuva.

No Fumacê aprendi como funciona o relacionamento da Polícia Militar do Rio de Janeiro com a bandidagem ostentando cordões, pulseiras e relógios de ouro. O carro da polícia passa devagar e apagado, de dia e de noite. Quando a viatura para, os marginais se aproximam da janela e a criminalidade é resolvida rápido, com propina.

Na favela onde moro hoje, em São Gonçalo (RJ), as viaturas também andam devagar. Não tem tanto lixo na rua, mas o mato ocupa a calçada e as casas só de telha e tijolo se multiplicam no morro. Tem barricada do tráfico, sofá velho jogado na esquina e fiação elétrica embolada no alto. Os jovens do meu bairro não praticam esporte no clube, não fazem faculdade, não trabalham, mas sabem empinar motos e conhecem as drogas. São Gonçalo, cidade de um milhão de habitantes, quase inteira é favelada.

Além do lixo, as favelas que habitei me apresentaram o fedor e o toque do esgoto correndo a céu aberto nas ruas onde piso. Lembro do cheiro da sujeira grudada há dias na pele dos meninos e meninas que passam o dia na rua, com quem brinquei no passado. É insuportavelmente doce.

Comecei a escrever textos contra a pobreza e a violência na adolescência e nunca soube o motivo. O motivo é porque vivo no meio das injustiças sociais do Brasil (o autoconhecimento liberta, dizem os filósofos). Acreditava que todos os brasileiros, sem exceção, sentem compaixão pelo pobre. A realidade não é simples assim: a classe média não compreende a pobreza. Protegida nos condomínios, do lado oposto da favela ela pratica a ganância, o preconceito e a vergonha.

Talvez você more em um lugar que sofra com a falta de serviços públicos, com a deficiência alimentar ou educacional. Não precisa ser no morro ou dominado pelo tráfico de drogas. A pobreza no Brasil é tão antiga e profunda que se tornou banal e alguns adjetivos fundamentais – pobre, favelado, injustiçado – são menosprezados.

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