Kaio Guilherme

Kaio Guilherme

Há três dias Kaio falava sem parar sobre a festa da escola que aconteceria só na sexta-feira. Insistia pra mãe dele emprestar o celular durante o evento porque seus amigos tinham marcado uma partida online no horário da festa. Thais concordou, desde o primeiro pedido ela sabia que concordaria. Filho único, oito anos de idade, Kaio conta com exclusividade com o amor da mãe, das tias e avós, que moram na casa da frente, no mesmo quintal.

Na data aguardada, o menino decidiu vestir a camisa do Vasco da Gama, embora também goste do Bangu, time de futebol do bairro onde mora. O cabelo estava pronto, na régua, cortou e pintou semana passada. Em mais um pedido que Thais já esperava, Kaio queria levar dois amigos no Uber pra festa. A viagem durou menos de 10 minutos e o motorista teria enlouquecido com a bagunça das crianças se levasse mais tempo. Eles trocaram tapas na cabeça, arrotos, peidos e histórias que defendiam com unhas e dentes mas só podiam ser reais na mente infantil.

No local da comemoração, um pátio ao ar livre, Kaio não desgrudava da mãe. Costuma ser assim desde pequeno até que um amigo se aproxime, chame pra brincar e Kaio se sinta confiante para interagir com os outros convidados da sua idade. Ao todo, trinta crianças e três professores, inclusive a mãe de Kaio, estavam no lugar que tinha pula-pula, totó, carrocinha de pipoca e barraca de lanches, além da moça que animava a festa e pintava o rosto das crianças. Foi na fila diante dela, ao lado das outras crianças e do futuro do Rio de Janeiro, que Kaio foi atingido na cabeça e caiu.

Na hora, Kaio conversava com Marcos, que tinha vindo no Uber também. Os dois combinaram de fazer a pintura de uma espécie de palhaço malvado, personagem do jogo eletrônico preferido dos jovens de hoje. A animadora fazia um triângulo com tinta roxa em volta dos olhos e passava tinta azul na ponta do nariz. Não deu tempo. A quantidade de sangue fez Marcos chorar e gritar. Vai carregar para sempre o trauma de testemunhar um amigo baleado. Ser atingido enquanto brinca durante uma festa aguardada por dias é algo incompreensível até para adultos, nenhuma das outras vinte e oito crianças esquecerá o que aconteceu.

Thais entrou em choque e sequer pôde tirar o filho do chão. Tremia e balançava a cabeça para os lados tentando encontrar uma realidade diferente. Um vizinho socorrista ajudou a levar Kaio para o hospital, mas só conseguiram um leito de UTI quase 48 horas depois. O pobre morador do Rio de Janeiro é alvejado de diversas formas, o desprezo pela saúde pública é uma delas. Kaio continua em estado grave e os boletins médicos se tornaram cada vez mais inconclusivos, tanto quanto a origem do disparo. Investigações policiais envolvendo comunidades dominadas pelo tráfico de drogas se arrastam durante anos sem solução. Em oração pela recuperação do menino, quando ele voltar para casa a família pensa em juntar suas economias e se mudar para um lugar melhor.

Kaíque sobreviveu aos ataques do Estado

O Estado brasileiro mata pobres e negros com admirável precisão. Geralmente através da violência desmedida da Polícia Militar, do abandono dos hospitais públicos e do descaso nos serviços básicos prestados à população. Idosos, adolescentes e crianças não são poupados. Kaíque Diego de Araújo Cardoso, 4 anos de idade, felizmente sobreviveu ao ataque duplo sofrido no fim do mês passado.

Kaíque ficou em coma por dois dias após ser atingido por uma descarga elétrica numa das roletas da estação BRT Mercadão, em Madureira, bairro do Rio de Janeiro. Foi o primeiro ataque do Estado contra ele. Teve duas paradas cardíacas, uma respiratória, foi entubado e recupera aos poucos a capacidade de falar. Ainda internado no Hospital Albert Schweitzer (HAS), Kaíque passou antes por dois hospitais municipais que não tinham os recursos necessários ao seu atendimento – segundo ataque do Estado – até conseguir vaga no Centro de Terapia Intensiva (CTI) do HAS, em Realengo, zona oeste da cidade.

Não houve acidente, mas um “dane-se o povo” por parte do consórcio BRT Rio e do poder público, que o contratou. Antes do menino ser atingido, usuários reclamaram que receberam choques das roletas de acesso. De acordo com um funcionário do BRT em entrevista ao Jornal Extra, dois eletricistas estiveram na estação Mercadão mas não conseguiram resolver o problema. Em vez de interditar imediatamente as roletas, única medida decente diante do defeito que colocava vidas em risco, os controladores orientaram os passageiros a passar com os braços levantados para evitarem o choque. Até que Kaíque ficou grudado em uma delas pelo peito por quase dois minutos, sua avó e sua mãe tentaram retirá-lo e foram atingidas e só na terceira tentativa o desgrudaram.

A mesma displicência generalizada mantém o mosquito Aedes aegypti vivo e ativo há décadas, se reproduzindo no nosso cotidiano. É revoltante como cada tipo de calamidade no Brasil, tragédias exclusivas de países onde a fiscalização é historicamente corrupta, recai sobre a mesma classe social e cor da pele, os mais vulneráveis. O consórcio BRT Rio deve ser duramente punido pela Justiça, tanto quanto a Prefeitura do Rio de Janeiro, responsável por colocar a segurança da população carioca nas mãos de empresários desumanos e mercenários.

A história poderia ter sido fatal se a Polícia Militar, que oscila entre o heroísmo e a selvageria, não agisse rapidamente. Assim que viu Kaíque desfalecido, o soldado Bruno Araújo pegou a criança nos braços e correu, arriscando a própria vida entre veículos, em direção ao hospital mais próximo onde realizaram os primeiros socorros. Bruno mudou o final da história. Provou que com dedicação sincera o Estado pode salvar aqueles que despreza.

Opressão que dura séculos

“Tomei um tiro, tomei um tiro”, gemeu Marcos Vinícius do Santos, de apenas 11 anos, antes de morrer, na Cidade de Deus. Que lugar brutal é este, onde crianças pobres, negras ou mestiças, são tratadas como seres insignificantes e assassinadas a esmo? É o Estado do Rio de Janeiro, é o velho Brasil violento, desigual e opressor das classes desfavorecidas.

A dor que atingiu o corpo de Marcos Vinícius, baleado enquanto ajudava o pai a vender peixes e frutas, qualquer adulto fluminense teme imensamente. Saímos de casa ao nascer do dia para trabalhar, apavorados. Torcendo para não acharmos uma bala perdida, pedindo a entidades e santos que desviem assaltantes do caminho, implorando a Deus por proteção contra a dor do tiro que Marcos, tão jovem, foi obrigado a suportar no braço e no peito ontem, faltando dois dias para o Natal. Além dele mais três pessoas foram baleadas: um adolescente de 17 anos, que também morreu, uma criança de 9 anos e uma mulher, ambos internados no hospital. Vítimas dos disparos realizados por ocupantes de um carro preto – da morte – que passou pela comunidade, dizem testemunhas.

O depoimento do pai de Marcos Vinícius é de um homem metade morto, de acordo com ele. Alguém profundamente infeliz, abandonado pela vontade de viver. Mas não há desespero em sua voz, apesar de ter perdido o filho instantes antes. O morador da favela sabe que a qualquer momento pode ter destino parecido, sofrer uma agressão física policial, execução sumária, ou receber um dos projéteis que têm incrível precisão de encontrar trabalhadores humildes ou seus filhos e poupar a elite branca brasileira.

Não é por acaso. Na zona sul carioca, principalmente no horário noturno deste período comercial intenso, se encontra uma viatura policial quase a cada esquina. Parece que o presidente de uma importante nação está fazendo compras nas redondezas. No horário de entrada e saída dos colégios da região, onde Marcos não tinha dinheiro para estudar, outras viaturas circulam o tempo inteiro fazendo a ronda. No resto do Rio de Janeiro a Polícia Militar caminha a passos curtos e suspeitos.

Incendiar pneus e pedaços de madeira é o desabafo do morador da comunidade, atingido pela guerra do Estado contra suas antigas lacunas sociais. Por fogo no lixo que não é recolhido regularmente pelo poder público, lixo que mais tarde entope valões e provoca alagamentos que maltratam o pobre novamente, sempre o pobre. Fecha o trânsito para despertar a atenção das autoridades e dos insensíveis – esclarecidos, mas omissos – que se sentem lesados pelos protestos. Para encerrar as manifestações, aí surge o Estado, através da força policial.

Os favelados devem enterrar seus filhos, muitas vezes mortos pelo próprio Estado, e retornar para casa em silêncio.