Faz um mês que você foi brutalmente assassinada em Fortaleza, querida Dandara. Travesti, prostituta viciada em crack e HIV positivo (Estado de Minas), talvez nunca tenha recebido uma declaração de amor deste mundo que a tratou com desprezo e violência desde cedo.
“É homem”, respondeu o médico às preocupações de sua mãe a respeito da sexualidade misteriosa da criança, aos 10 anos de idade. O ano era 1984 e dona Francisca se surpreendeu ao vê-la dançando Gretchen. O doutor se enganou, que grande mulher você foi. A vizinhança do bairro Bom Jardim, onde passou a maior parte da vida, pagou do próprio bolso seu enterro. Estão desolados, perderam a amiga fiel e divertida, dona do típico humor cearense. Em 2017, esperamos que profissionais de Medicina sejam capazes de compreender a busca pela identidade de gênero.
Aos 42 anos, tentavam sem descanso tirar de você o direito de ser quem quisesse, vestir o que bem entendesse. Os sete assassinos, entre eles quatro adolescentes (confirmação do quanto a juventude brasileira está desamparada), zombaram até da roupa íntima que você usava, ensanguentada, rasgada pela agressão.
Chutes na cabeça, socos, pauladas e pedradas esgotaram dolorosamente as forças do seu corpo pouco a pouco antes de dois tiros concluírem o martírio que lhe tirou a vida. O Brasil descobriu tudo, Dandara Kataryne, a Europa e os Estados Unidos se chocaram e estiveram no pobre Conjunto Ceará para conhecer sua história. Você se tornou símbolo das manifestações culturais que acontecem hoje no bairro Bom Jardim, em sua homenagem.
Sofreu torturas por mais de uma hora, como almas guerreiras padeceram injustamente e marcaram nossa sociedade. Colocada em um carrinho de mão, vendo que estava sendo tratada como entulho, a população ligou para o 190, mas a Polícia só chegou quando estava morta. Já tinha apanhado em público antes, diariamente outros espancamentos acontecem, não é novidade para a Polícia.
Morta no conjunto habitacional vizinho, chamado Palmares. Nome do quilombo mais famoso do Brasil, onde no século 17 viveu outra Dandara, mulher de Zumbi. Assassinada por bandidos que materializaram o rancor do pai de família “honesto” que gosta de dizer: “Viado pra mim tem que morrer, se eu pegar um viado eu mato”. Gente que jamais conhecerá a vida de verdade, vida é amor incondicional.
A luta da população LGBT no país que mais mata travestis e transexuais no mundo está longe de terminar. Em 2016, de acordo com o Grupo Gay da Bahia (GGB), a transfobia vitimou 144 pessoas. Ao todo 343 lésbicas, gays, bissexuais e transexuais foram assassinados. E esta declaração de respeito, que reconhece seu valor, é tardia. Mas não poderia esconder meu amor, Dandara, depois de saber com que dignidade você recebeu tanto ódio.