Eu estava enganado e posso ter ajudado a levar alguns amigos ao erro. O que existe de mais triste em São Gonçalo não são as línguas negras de esgoto que há anos cortam as ruas. As pilhas de copos de guaravita no chão são um problema até fácil de resolver com um pouco de vergonha na cara, fiscalização e punição. O que há de mais revoltante não é aquilo que incomoda ao público que paga 40 reais por um hambúrguer artesanal. A maior tristeza gonçalense são questões muito mais graves e fora da percepção comum.
É cada dia menor a idade dos vendedores de balas Halls que atuam nos estacionamentos dos supermercados Assaí e Extra, em Alcântara. Às vezes acho que o problema é o risco de ser assaltado ou a abordagem inoportuna dos vendedores mirins. Guardo as sacolas de compras dentro da mala do carro e dou a partida para sair de lá o mais rápido possível. Nada pode ser mais doloroso do que a destruição do futuro de uma cidade, suas crianças. Esse é o problema que merece maior atenção.
Ainda dentro de um estacionamento, mas agora no bairro vizinho, o Raul Veiga, onde fica a Favela da Central, os coletes verdes fluorescentes e laranjas dos flanelinhas estão ficando mais folgados. No passado eram os adultos que conseguiam uns trocados manobrando carros. Quem desempenha a função hoje são crianças que mal aprenderam a se expressar verbalmente.
Em muitas escolas gonçalenses a violência determina como e quando haverá aula. As paredes das salas da Escola Municipal Ferreira Pinto, no bairro Vila Três, estavam pichadas com o nome de uma facção criminosa na última vez que estive lá para votar. Inclusive a parede do quadro-negro. Centenas de crianças e adolescentes lendo nos três turnos escolares o nome do bandido que decide o destino das suas vidas, ao lado da fórmula matemática ou da conjugação verbal que deveriam aprender.
São elas, as crianças, que descobrem o que é o crime cada vez mais cedo, colocadas em contato com armas e drogas. O tráfico decide até sobre seus limites e se deseja dar uma pausa. Veio de traficantes a repreensão mais eficiente quando, durante uma feira escolar, alunos de um colégio estadual no Jardim Catarina exibiram armas de brinquedo e cantaram músicas que faziam apologia ao crime organizado.
O que há de mais triste em São Gonçalo é a forma como a juventude pobre é tratada. Forçada a ser camelô, flanelinha ou soldado do mal. É o distanciamento entre o discurso marqueteiro do governo Nanci, da incapacidade municipal de legislar e captar recursos e a realidade de milhares de jovens inutilizados nas esquinas, entre eles menores de idade, que fumam um ou dois cigarros de maconha nos intervalos entre as corridas como mototaxistas.
Do ponto de vista urbanístico, São Gonçalo é morta. Ela é incapaz de conectar três metros quadrados através de uma calçada. Quem mais sofre são os portadores de necessidades especiais. Em Alcântara tem um vendedor ambulante paraplégico que se movimenta sobre um skate, pegando impulso com as mãos no chão, tocando o esgoto e a merda dos cachorros. Isso é tristeza. A gula de um vereador que acumula empregos públicos sem trabalhar, rouba do povo e ainda agride fisicamente outros vereadores. A cobiça de uma família empregada no governo graças ao sobrenome. Enquanto a criança, o adolescente e o adulto pobre gonçalense são reféns do crime e vivem na humilhação.
Excelente reflexão Mario! Vamos conversar?
Texto maravilhoso sobre uma triste verdade cada vez mais comum no dia a dia, infelizmente ver tudo isso com tanta frequência faz com que as pessoas passem a se acostumar tratando tudo isso com normalidade, apesar de não ser. Acredito eu que oque falta não só em São Gonçalo, mas em todos os lugares é ser mais humano.