São Gonçalo é uma cidade de baixa renda, pouca urbanização e mau rendimento escolar. Explico: 34,5% da população vive em domicílios com até meio salário mínimo por pessoa, menos de 29% das vias públicas são urbanizadas e temos a 3ª pior avaliação da educação básica do Estado do Rio de Janeiro (IBGE). A soma desses índices constrói São Gonçalo, município onde as crianças passam o dia descalças e sem camisa nas ruas de terra esburacadas, depois de duas ou três horas na escola sem aprender nada. Não é preciso ser a cidade mais pobre do Brasil, isso é pobreza suficiente. E quanto mais pobre for a comunidade dentro de São Gonçalo, mais popular será o hábito de colocar uma pipa no alto.
É um brinquedo barato. Pode ser comprado com menos de um real, dinheiro que para muitos meninos é escasso. Nesse caso, os mais ágeis conquistam sua pipa nas disputas com outros garotos pela pipa voada, que perdeu o tora. E a linha pode ser encontrada no chão e emendada em pedaços. Pedir uma pipa a um amigo que tem duas também é bastante comum. A humildade de pedir sempre que estiver precisando é uma qualidade que os adultos, em geral, perdem. Entre as crianças das comunidades de São Gonçalo, quem não pede não brinca e também não sobrevive.
Além da pipa, resta a bola como alegria para o menino gonçalense. Em tempo de longa crise econômica e sucateamento da educação municipal, em breve agravado pelo ócio das férias escolares, não sobra o que fazer. Bairros como Boa Vista, Rocha, Jardim Alcântara e Colubandê resgataram, ou nunca perderam, o hábito de soltar pipa. Há pessoas que afirmam com seriedade, como se defendessem alguém injustiçado, que nesses bairros adultos e crianças soltam pipa o ano inteiro, não apenas durante o período de férias.
Como bom gonçalense e pai de um garoto de 8 anos nascido no coração de Nova Cidade, em frente à Praça da Liberdade, fui soltar pipa no Jardim Alcântara e no Colubandê no último fim de semana. A disputa por uma pipa voada era tão insana que os meninos subiam (sem cerimônia) no capô dos veículos para ganhar altura e pular para pegar a linha. Eles empurravam uns aos outros, escalavam muros e invadiam casas, se fosse preciso.
O som do ambiente era uma mistura de três elementos. Funk alto, pornográfico e violento, de baixo calão. Escapamento de motos circulando em alta velocidade sob a direção de adolescentes sem capacete. E gritos de felicidade dos moleques quando cortavam a linha de alguém. Entre esses meninos havia crianças com deficiências físicas, cicatrizes de cortes profundos e de queimaduras extensas no rosto e no corpo. A maioria era negra. Criança loira e de cabelo liso na favela é algo exótico, logo recebe apelidos como russo ou surfista. E me surpreende a ausência de meninas nas grandes concentrações de crianças nas ruas. Quanto mais pobre um lugar, mais masculino ele se mostra.
No Colubandê, dentro da Fazenda – melhor lugar da cidade para brincar, amplo, sem fiação, com sombra e um lindo pôr-do-sol – três meninos se aproximaram e um deles me pediu uma pipa. Esse mesmo garoto tinha me pedido uma pipa ano passado, naquele local. Acho que não me reconheceu. A vida do pobre não melhora de repente, como aparece na novela. Dei uma raia só e eles saíram exultantes, pulando, com um brinquedo de 50 centavos nas mãos para dividir.