Quando as mulheres são maioria, o mundo fica bem melhor

Para o meu azar, frequento poucos lugares onde as mulheres são maioria ou exercem posições de liderança. Os projetos em que elas têm importância nas decisões alcançam resultados visivelmente melhores.

Em 2008, quando uma crise financeira abalou a Islândia e o país quebrou, a única empresa de investimentos que continuava dando lucros era chefiada por mulheres. Graças a uma nítida mudança de estratégia chamada de “lucro com princípios”.

No transporte intermunicipal entre São Gonçalo e Niterói, de vez em quando a maior parte dos passageiros no ônibus ou na van é composta por mulheres. Resultado do crescimento da participação no mercado de trabalho. A viagem é simplesmente mais civilizada. Elas embarcam dizendo “bom dia”, antecipam o pagamento da passagem e esbanjam educação.

Na manifestação contra a cultura do estupro ocorrida em outubro de 2016, em São Gonçalo, pude experimentar a eficiência do comando feminino. Marchamos da Praça Zé Garoto à Praça do Rodo, tradicionais praças gonçalenses, com as mulheres à frente gritando palavras de ordem. Algumas diferenças em relação aos protestos liderados por homens podem ser sutis, mas são fundamentais.

O humor feminino consegue ser mais agradável, inteligente e profundo. Elas cuspiam de raiva empunhando uma placa de protesto e logo em seguida olhavam para o lado e sorriam. A organização, mais silenciosa e incrivelmente prática. O nível de intimidade do grupo era quase familiar, mesmo entre as que se conheceram há pouco tempo.

Homens interagem usando armadura, forçados pela necessidade de dominar. As mulheres são coesas e mais fortes por isso. E a delicadeza não é característica obrigatória. Uma delas se envolveu numa grave discussão com um homem, bêbado, que desrespeitou a passeata. Quase saíram no tapa.

Havia cinco homens no início da passeata. Pelo menos dois deles, jornalistas e fotógrafos cobrindo o evento. Será que os homens pensam que não devem ir a uma passeata contra a cultura do estupro? Que este é um problema da mulher? Seria um erro porque são os homens que precisam ser conscientizados.

O pipoqueiro da Praça Zé Garoto me disse: “Sou contra o estupro, mas as mulheres não deveriam provocá-lo usando roupas tão apertadas ou decotadas”. As pessoas têm o direito de se vestir como quiserem. Admitir o crime é o que chamam de cultura do estupro.

As mulheres não almejam ser maioria, brigam por liberdade e independência. Às vezes penso que algumas querem apenas ser deixadas em paz (espero que não vejam este artigo como uma tentativa de limitá-las). Cansadas de atender às ordens masculinas, reivindicam o direito de debater à mesa onde ainda não o fazem. Para o bem dos projetos, deveriam ser ouvidas.

Depois da panfletagem pelo caminho, quando chegamos à Praça do Rodo, éramos apenas dois homens acuados no meio de dezenas de mulheres. Senti medo de apanhar, de ser usado para demonstração da força feminina em busca de vingança. Eu e o outro cara ficamos lado a lado, como se um protegesse o outro. Não houve violência, entretanto, afinal, as mulheres eram maioria.

Maria, guerreira gonçalense

Gostaria de ter publicado, nesta coluna, a opinião de uma gonçalense sobre o projeto de lei 5069/13, que criminaliza ainda mais o aborto, ou sobre a luta das mulheres por maior participação política e igualdade de direitos. Diversos colunistas brasileiros aderiram à esta campanha. Não consegui. Deixo o espaço aberto para semana que vem. Mas não abro mão de destacar, hoje, um grande exemplo feminino de sobrevivência na cidade de São Gonçalo.

Vendi salgados e sucos na Rua da Feira, e em todo Alcântara, ainda adolescente, na década de 1990. Era ambulante, carregava o garrafão de suco a pé, e ao meu lado Maria carregava o cesto com rissoles, pastéis e coxinhas, muito mais pesado. Viúva de meia-idade e mãe de três filhos, buscando o sustento da família, o convite para iniciarmos esta humilde atividade comercial foi dela, e eu aceitei prontamente. Todo adolescente queria uns trocados para jogar fliperama naquela época.

Surpreendentemente, quem se esforçava para segui-la era eu. Apesar da diferença de altura gigantesca, Maria era ágil e eu praticamente tinha que correr para acompanhá-la de loja em loja, onde oferecíamos o lanche às vendedoras e seus clientes. Após algumas semanas de operação, éramos ansiosamente aguardados no fim da tarde, interrompíamos as vendas de roupas onde chegávamos, ficamos famosos.

Eu enchia os copos com suco e entregava aos nossos clientes. A chefe servia o salgado e recebia a grana. Na volta para casa, na subida do Morro da Caixa D’água, no Vila Três, eu recebia minha participação, verdadeira fortuna para um garoto sem contas a pagar.

Maria era uma vizinha, amiga dos meus pais, e me ensinou uma lição fundamental: sair da mesmice, trabalhar de cabeça erguida, não ter vergonha de buscar soluções para crises financeiras domésticas, ainda que tenha recursos tão escassos quanto uma garrafa e um cesto.

Dona de uma escoliose gravíssima, que provocava dores terríveis, Maria jamais deixou eu carregar o cesto pesado com os salgados, por mais que eu insistisse em trocar pela garrafa de suco. Parávamos diversas vezes no caminho para ela tirar o cesto do braço, apoiá-lo em algum lugar, e descansar.

Nosso projeto durou poucos meses, mas desde então Maria já vendeu sacolé, caldos, petiscos, bolos e bebidas. O corpo torto continua o mesmo, ela não para de lutar.