A desigualdade entre os jovens gonçalenses cria duas cidades

Dois tipos de jovens se destacam e têm papel fundamental na construção irregular de São Gonçalo. Fora das favelas, onde prevalece a pobreza, os tipos podem ser vistos misturados nas ruas e nos espaços públicos.

Majoritariamente do sexo masculino, frequenta a Fazenda Colubandê o esportista saudável, branco, que corre na pista, joga basquete na quadra bem vestido e convida as meninas para ver o jogo. Elas até se maquiam para assistir. Andam em grandes grupos, por segurança.

Também frequenta a Fazenda o jovem negro, de chinelo, bermuda, sem camisa (carregada no ombro) e boné. Ele perambula pelo espaço. Acende um cigarro, senta na escada diante da pista e vê as pessoas correndo. Se encontrar um amigo, levanta, brincam de luta por alguns minutos e quando se cansam os dois comentam as últimas notícias das bocas de fumo das redondezas. Esse jovem assusta, afinal, tem a aparência daqueles que assaltam. Anda em grupos menores.

Há rapazes e moças no Ensino Médio particular que almoçam todos os dias, de segunda a sexta, nos restaurantes do Centro e do Rodo após as aulas. Na São Gonçalo carente os jovens não estudam, passam o dia planejando o próximo churrasco de rua, jogando futebol ou fumando maconha. De acordo com o Atlas Brasil 2013, a proporção de gonçalenses de 18 a 20 anos com Ensino Médio completo é de apenas 45,52%.

Os flanelinhas serelepes do bairro Raul Veiga, que atuam ao lado do campo Central, têm 17, 15, 12 e até 10 anos de idade. Abrem um sorriso alegre depois que recebem a gorjeta extorquida. São um pouco mais maduros os jovens que cobram pedágio dos carros que passam pelo atalho da RJ-104 por baixo do viaduto, entre Coelho e Alcântara. Por outro lado, a São Gonçalo de ensino avançado exporta alunos fluentes em Inglês para olimpíadas internacionais de Matemática e eles retornam medalhistas.

Existe a cidade de cultura pujante alavancada pelo teatro cômico, pelo hip hop e pelas artes em geral praticadas principalmente pela juventude. A militância política dela, dedicada a estudar temas e leis a fim de cobrar a aplicação honesta do dinheiro público, é nobre e bela, mas pouco conhecida.

Houve migração de criminosos do Rio de Janeiro para São Gonçalo após a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora. Mas eles só conseguiram se estabilizar por aqui e aumentar a criminalidade porque encontraram soldados suficientes entre os jovens desocupados do município.

A São Gonçalo suja, que provoca medo, é maior, conta com a conivência do poder público, mas não significa que a outra seja pequena, é repleta de exemplos de sucesso conquistados com dedicação e investimento nos jovens. São eles que criam a cidade do próximo instante.

Brasileiros sem direitos

O informe da Anistia Internacional sobre a situação dos direitos humanos no mundo, divulgado dia 23 de fevereiro, obriga aos brasileiros a readmitir que vivem sob um regime secular socialmente desigual, violento e preconceituoso. Presente em mais de 150 países, a proposta da organização não governamental é clara: combater milícias e órgãos do Estado que agridem fatalmente a liberdade, cidadania e integridade física de grupos específicos: pobres, negros, índios, LGBTs e outras minorias.

Nas quase cinco páginas dedicadas ao Brasil (menos criminoso, o Canadá mereceu apenas duas), a Anistia Internacional destacou o alto número de homicídios de jovens negros, antiga vergonha nacional. Em 2014 a chance de um jovem negro ser assassinado no país foi 2,5 vezes maior que a do branco, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que apontou 58 mil assassinatos no mesmo ano. Outro ponto destacado foi a violência das forças oficiais de segurança, refletida nos maus tratos contra a população carcerária, vivendo em condições desumanas, e nas execuções extrajudiciais, como o assassinato de 5 cariocas com idades entre 16 e 25 anos, negros, cometido por policiais militares do Rio de Janeiro.

Desde chefes de família de classe média a senadores e deputados federais, parte significativa da sociedade não compreende que o terror tem alvos preferidos, entre eles crianças e adolescentes moradores de comunidades pobres que evitam até serem vistos na rua sem camisa pela Polícia, pois temem serem confundidos com bandidos. É inadmissível a perpetuação deste preconceito brutal ao longo da História, gerador de fobias sociais profundas, por isso cresce a importância do informe da Anistia, publicado incansavelmente há 54 anos.

A aprovação pelo Congresso do Projeto de Lei 2016/15, conhecido como PL Antiterrorismo, foi o último ato do Estado contra os brasileiros sem direito à moradia digna, vítimas da impunidade e reclusos nas periferias e favelas. O texto amplo, vago do projeto permite que esses cidadãos sejam enquadrados como terroristas caso protestem contra os abusos sofridos, um ataque à liberdade de manifestação.

Se de um lado existem apoiadores de medidas retrógradas, gente que não se incomoda com a pobreza e a injustiça ao redor castigando os mesmos brasileiros desde o período colonial, do lado oposto há indivíduos e organizações que defendem a mistura perfeita de raças que torna o Brasil um país extraordinário. Entre estes encontramos o Progresso.

Sofrimento do gonçalense comum

O gonçalense comum, cuja renda familiar gira em torno do salário mínimo, nasce geralmente nas maternidades do Centro, Nova Cidade, Porto Velho ou Neves, que atendem através do Sistema Único de Saúde. O menino ou menina suporta a primeira infância na creche comunitária, em casa com os irmãos ou na adversidade da rua, logo que aprende a andar. Quando matriculado na rede municipal de ensino, sua frequência é irregular, falta professor, merenda, uniforme, estímulo ao estudo e apoio intelectual dos pais.

Perde cada vez mais aulas a partir do segundo ano do Ensino Fundamental, já tem 9 anos e mal sabe juntar as letras, sua escrita é péssima, a única diversão são as brincadeiras de rua.

Avança em idade e se interessa por roupas de marca, boné, tênis, relógio e joias, seus pais dizem aos gritos que não têm dinheiro para comprar nada disso. Parentes lhe apresentam o álcool, mas como sua tolerância ainda é baixa, temporariamente deixa de beber.

O garoto ou garota passa menos tempo em casa ao se envolver completamente com a rua e seus frequentadores, os amigos. Quanto mais cresce, menos vai à escola: perambula, solta pipa, joga futebol, frequenta lan houses, aprende a fugir e mente com perfeição sobre seu paradeiro.

Antes dos 18 anos, quando descobre a maconha, pensa “minha vida está completa”. O dinheiro continua escasso, às vezes arruma uns trocados, até rouba para ir a festas sozinho e se embebedar. Arruma o primeiro emprego, engraxate, carregador ou ajudante de qualquer coisa, quando muito terminou o Ensino Fundamental e definitivamente para de estudar. Pratica sexo com frequencia, tem dezenas de amigos, acha que sua vida nunca foi tão boa, embora a grana seja curta.

Se for menina, engravida nesta época. O menino tem seu primeiro filho. Não sabe o nome do prefeito da cidade. Jamais praticou qualquer esporte além do futebol no campinho de várzea improvisado em terreno baldio. O único sonho é conquistar mais dinheiro sem saber como, visto que não tem formação educacional.

Se torna um adulto condenado à informalidade, aos problemas financeiros, às drogas, escravo das ações displicentes do passado. Vive de bicos por toda a vida. O álcool, que jamais abandonou (como os amigos de copo), traz os primeiros problemas de saúde no fim da juventude.

São Gonçalo continua a mesma cidade, às escuras, que não sabe lidar com o próprio lixo, sem oportunidades de trabalho, que mata inocentes por falta de manutenção básica na rede elétrica porque não conta com o apoio deste gonçalense comum. Ao mesmo tempo ele precisa desesperadamente de São Gonçalo para ser feliz.