Adeus, mula Neli

Quando Neli chegou ao sítio em 2013, eu tinha esperanças de que fizesse um bom trabalho. Foi fácil escolhê-la no leilão do ano anterior: alta, polida e firme, achava que podia confiar naquela mula. Um dos graves problemas do mundo é a falta de confiança nos animais (e nas pessoas). Quase 4 anos depois, as bananas amadurecem, caem do pé cachos inteiros e apodrecem no chão; Neli nunca esteve presente para me ajudar a subir a ribanceira da plantação com as frutas no lombo.

No começo achei que era problema de adaptação. “A mula é inteligente, treinada num sítio com menos altos e baixos que o seu. Em dois meses ela estará tinindo”, me disse o leiloeiro quando fui reclamar da preguiça do bicho, que empaca cem vezes por dia. “Enganaram você, Mário”, repete minha mulher, em tom de reprovação, a cada teimosia de Neli.

No ano seguinte a mula começou a desaparecer por São Gonçalo. Comia como cinco elefantes no início da manhã, empacava até a hora do almoço e à tarde não havia sinal de Neli no sítio. Definitivamente fugia porque não queria colaborar. Compreendi que a única intenção dela era prejudicar o meu negócio.

Minha intimidade com Neli aumentou. Preguiçosa, sumida, mas ainda garbosa e realmente esperta, passei a respeitá-la como um ente da família ou amiga de trabalho. É a ação confusa do tempo. Trouxe veterinário até o sítio achando que a apatia podia ser sintoma de doença, dava banho, escovava – ela adorava; tentei, em vão, convencê-la a trabalhar com longas conversas no estábulo. Depois desisti.

Há mais de um mês não vejo a mula. Desapareceu um dia, como gostava de fazer, não retornou e deixei de procurá-la. Perdi R$ 3 mil pagos em 2012, gastei fortunas com a alimentação dela desde então e centenas de quilos de banana apodreceram antes de chegarem à feira. Em vez de odiar Neli por tudo isso, prefiro levantar a cabeça e tentar de novo. Até convenci a cabeça dura da minha mulher, que queria vender o sítio pra pagar nossas dívidas, a comprar outro animal, mais baixo que Neli porém mais parrudo. Vão entregar no começo do ano que vem.

Maldita mula Neli

Povo da cidade, Neli voltou pro sítio! Disseram que eu tinha matado ou vendido a mula preguiçosa, nada disso, eu a procurava em cada canto de São Gonçalo. Noite passada ela passou porteira adentro pisando forte, com o nariz empinado – parecia sorrir – como se fosse a dona do lugar após meses desaparecida. Montado nela voltou junto meu ódio.

O pequeno sítio da família fracassou. Gastamos totalmente nossas reservas, devemos dinheiro a Deus e ao mundo. Para piorar, a chuva braba da semana destruiu os pequenos pés de banana, nossa última esperança de um futuro com menos problemas financeiros. Hoje a fruta está tão barata que não vale a pena o esforço de colher e transportar pra feira, principalmente sem a ajuda desta mula safada, sempre sumida ou imóvel. Nos grandes pés os cachos apodrecem, nenhum homem aguenta descer a ribanceira sozinho e carregá-los nas costas.

Sei que a raiva é um sentimento ruim, reprovado por Deus, mas como odeio Neli. Quando ela some, lembro do prejuízo que tive ao comprá-la enganado, diziam que era obediente e trabalhava rápido. Tudo mentira. Quando aparece e só come e empaca, come até a ração dos outros bichos, fico ainda mais revoltado. Pancada pra ela não é nada, parece que a mula dos infernos não sente dor, apanha desde que chegou há três anos e carregou no máximo um pouco de capim no lombo.

O ano de 2016 começou mal, que chance de recuperação nós temos? Perco o sono ao pensar que venderemos o sítio se não tiver jeito. Falei com o pessoal daqui, minha mulher e meus filhos, temos que inventar outra fruta pra vender, prender Neli para que não fuja mais e deixar a mula passando fome, se não colaborar. Pelo menos este ano ela precisa honrar meu investimento. Em outubro já decidimos fazer o último empréstimo de nossas vidas para comprar outro animal. Depois sumir com Neli de vez.

Minha mula sumiu

Comprei uma mula em outubro de 2012, em um grande leilão em São Gonçalo. Hoje peço ajuda, faz uma semana que não a vejo, procurei por toda a cidade.

Precisava de um bom animal aqui no sítio quando a comprei. De porte altivo e aparência robusta, ela parecia ser a melhor mula das redondezas, mas não gosta de trabalho não. Se pego na sela, empaca de um jeito que nem três homens tiram do lugar. O leiloeiro disse “é trabalhadora”, mas não puxa arado nem carrega balde d´água, empaca de vez. Estou arrependido, mas quero a mula de volta.

O engraçado é que a safada come que é uma beleza e adora a sombra das árvores. E é esperta: antes da primeira gota de chuva cair, quando mais preciso dela pra subir e descer as ladeiras enlameadas, ela desembesta por aí e some, não é a primeira vez, mas nunca ficou tanto tempo longe de casa. Outra ocasião entrou no sítio do vizinho, pisoteou a plantação e ainda tive que indenizá-lo. Imagine, uma mula que não trabalha e ainda me dá prejuízo!

Já falei pra ela, deixo descansar aos sábados e domingos e segunda-feira é dia de trabalho. Não tem jeito, a mula me fita com olhos negros mortos de deboche e firma as patas no chão. Informo aos conhecidos que a mula sumiu mas eles não acreditam, sabem que ela é inútil e pensam que a vendi a fim de me livrar do problema. Não importa, não tenho vergonha, fugiu de verdade e vou encontrá-la ainda que percorra o Estado a pé. Minha mula está marcada na coxa com o nome dela, Neli, caso a veja por perto.

Depois de dois anos e meio de sofrimento com sua apatia, a raiva é tão forte que vou comprar outra mula no leilão do ano que vem. Leiloeiros fazem promessas mentirosas, só que dessa vez escolho certo, uma feia que ninguém queira, acostumada com a lida, sai mais barato e são prestativas. Tem muito trabalho a fazer, as bananeiras do sítio estão cheias de cachos pra carregar.