Lições de Casa-grande & senzala para o Brasil atual

Lições de Casa-grande & senzala para o Brasil atual

A frase “A casa-grande surta quando a senzala vira médica” surgiu em 2016 com Suzane da Silva, jovem negra estudante de Medicina que sofreu ataques racistas na internet. E viralizou no ano seguinte a partir da postagem no Facebook de Bruna Sena, primeira colocada no vestibular de Medicina da USP de Ribeirão Preto e negra também. Casa-grande & senzala, obra-prima de Gilberto Freyre publicada em 1933, ajuda a entender o país onde vivemos e o protesto dessas estudantes. Continue lendo “Lições de Casa-grande & senzala para o Brasil atual”

Nosso racismo define a cor da pele dos pobres

Nosso racismo sustenta a pobreza brasileira

“Se a miséria dos pobres é causada não pelas leis da natureza, mas por nossas instituições, grande é o nosso pecado”, afirmou Charles Darwin. Como no Brasil três em cada quatro pessoas que estão na parcela dos 10% mais pobres são negras, o pecado dos brasileiros ultrapassa o mal imaginado pelo criador da famosa teoria da evolução das espécies. Porque nosso país determina pela cor da pele quem sofre maior risco de ser jogado na miséria.

No extremo oposto, o topo da pirâmide dos mais ricos, negros são minoria: 18%, de acordo com o IBGE, embora mais da metade da população se declare negra (Agência Brasil).

Negros com curso superior ganham, em média, 29% a menos que brancos com o mesmo grau de instrução. Apenas 4,7% dos cargos executivos das 500 maiores empresas brasileiras são ocupados por negros. Pessoas de pele negra e cabelo crespo, mesmo qualificadas, são menos contratadas para posições de destaque. O estudo O Desafio da Inclusão, do instituto de pesquisa Locomotiva, também verificou que 18% dos adultos brancos têm curso superior, enquanto a porcentagem entre negros é de 8% (Época).

Os brasileiros admitem que existe preconceito de cor no país. Somos racistas. Mas não reconhecemos que somos, individualmente, preconceituosos (Estadão). Somos racistas hipócritas.

A cor da pele não impede o nascimento de um Joaquim Barbosa, por exemplo. Não há dúvidas científicas de que os negros são intelectualmente tão capazes quanto qualquer raça. Eles não emprestaram apenas sua força física à formação do Brasil, mas uma cultura avançada e alta capacidade técnica, como Gilberto Freyre detalhou em Casa-grande & senzala. Acontece que negros vivem sob condições sociais desfavoráveis que tornam menos provável a eleição de um deles como presidente do STF.

Para o negro brasileiro, a vida é ainda mais dura: 71% dos assassinados no país têm a pele negra, bem como 64% da população carcerária. É um massacre, visto que em 2016 61 mil pessoas foram assassinadas ao todo e a quantidade de presidiários atingiu 726 mil em junho do mesmo ano.

Enquanto sofremos com a chaga da pobreza, temos um país inteiro a ser construído. As semelhanças entre o Brasil de hoje e a colônia do século 19 são impressionantes. A atividade econômica abandonou a escravidão, se diversificou com a inclusão de serviços e indústrias, mas continua visando a exploração do trabalhador, com o incentivo do Governo Temer.

Pela cor da pele sabemos quem têm mais chances de ser pobre e de ser revistado pela polícia dentro dos ônibus. Como a pobreza prefere os negros, não há considerável mobilização da opinião pública – influenciada por veículos de informação pertencentes aos ricos e brancos – para combatê-la. Para sociólogos, antropólogos e especialistas em desenvolvimento social, a mudança deve envolver investimento na educação, aplicação efetiva das cotas raciais em concursos, mais rigor na punição a crimes de racismo e formulação de novas políticas públicas.

Rafael Braga provoca o Brasil da prisão

Rafael Braga desafia o Brasil da prisão

Você já viu as imagens de Rafael Braga que circulam na Internet? Ele esboça um sorriso de superioridade, de alguém debochado que sabe de algo que o resto das pessoas ignora. Condenado, injustamente, a 11 anos e três meses de prisão, com esse sorriso Rafael desafia os brasileiros a encarar os males mais profundos do País.

Vinte e oito anos de idade, morador de rua, catador de materiais recicláveis e preso pela quarta vez: duas vezes por roubo, em 2006 e 2008; em 2013, por porte de “aparato incendiário ou explosivo”; e em janeiro de 2016, por tráfico de drogas e associação ao tráfico.

As duas últimas prisões não se encaixam no conceito de Justiça. Em junho de 2013, passando perto de uma manifestação política, Rafael foi preso carregando uma garrafa de desinfetante Pinho Sol e outra de água sanitária, considerados perigosos pelo Ministério Público (MP) e pelo juiz Guilherme Duarte, que acatou a denúncia do MP. O laudo do esquadrão antibomba da Polícia Civil, entretanto, atestou que ele carregava produtos de limpeza (CartaCapital).

– As substâncias têm ínfima possibilidade de funcionar como coquetel molotov.

Na prisão mais recente, em 2016, policiais militares o acusaram de levar 0,6g de maconha, 9,3g de cocaína e um morteiro. Sem outras testemunhas de acusação e desprezando o depoimento de uma mulher que disse que Rafael estava de mãos vazias, a condenação rendeu mais de 11 anos de cadeia, pena aplicável aos estupradores de pessoas vulneráveis. Rafael alega que os policiais exigiram informações sobre bandidos da Vila Cruzeiro, comunidade onde sua mãe mora, e como não sabia de nada, o espancaram e forjaram flagrante usando o conhecido kit traficante.

Rafael contraiu tuberculose na cadeia. Quarta-feira (30/08), o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro negou pedido de habeas corpus para prisão domiciliar enquanto realiza tratamento médico. Os policiais que o prenderam, os juízes e desembargadores que insistem em mantê-lo preso e os brasileiros que apoiam a manutenção da pena veem Rafael como um marginal que poderia ser alguém na vida se quisesse, como Joaquim Barbosa, ou se fosse devidamente educado pelos pais, mas preferiu o crime. Entre os juízes, apenas 15,5% são pardos e negros (Conselho Nacional de Justiça). De acordo com a lógica racista, os negros não querem ser juízes, acham o crime mais interessante.

Somente 18% dos cargos de destaque no Brasil são ocupados por negros (Folha). Sessenta e dois por cento da população carcerária nacional são negros (Carta). A cada 100 jovens assassinados, 77 são negros (Anistia). Não é fácil ser negro, nem Joaquim Barbosa.

Alvo da atenção da imprensa e de movimentos políticos, Rafael acha graça. Ele percebe que seu caso é tão representativo quanto uma gota do Oceano Pacífico numa colher de sopa – a cada 23 minutos um negro na faixa etária dele é assassinado (BBC).

Obscuro para os preconceituosos, Rafael Braga compreende o significado de estudos apoiados em índices estatísticos. O desafio que propõe é levarmos em consideração o fato da pobreza, da violência e da arbitrariedade do Estado afetarem principalmente uma determinada cor da pele. Diz muito sobre o Brasil, sobre a origem dos seus problemas e como combatê-los.

Libertem Rafael Braga.