A essência humana está em extinção

A essência humana está em extinção

Somos membros de uma espécie animal que sobreviveu às adversidades da evolução ajudando uns aos outros. Preferimos a socialização ao isolamento, não suportamos a solidão que impede de compartilhar sentimentos e experiências. Para nossa infelicidade, a colaboração primária e íntima, fundamental por milhares de anos, deixa de ser praticada de forma inversamente proporcional ao avanço da tecnologia aplicada em áreas como agricultura, medicina e comunicação.

Parece que a facilidade de ter ao alcance das mãos, dentro da geladeira, as calorias necessárias para um mês inteiro reduz a capacidade humana de se lembrar de quem tenta sobreviver comendo dia sim, dia não, ou até menos. Criamos um mundo onde oito pessoas possuem riqueza equivalente à metade da população global. No extremo oposto desse pequeno grupo, 2,2 bilhões de pessoas são pobres ou estão muito próximas da pobreza. Não significa apenas fome, mas doença, má educação e condições indignas de sobrevivência. É uma aberração tanto do ponto de vista social quanto biológico, desigualdade que não encontra paralelo em nenhuma das 8,7 milhões de espécies vivas na Terra.

Não bastasse a violência e a pobreza que infligimos a nós mesmos, a destruição que causamos ao meio ambiente é evidência de que – em um momento recente da História de mais de 300 mil anos do homo sapiens – perdemos a convicção de que estamos conectados uns aos outros e à natureza. Em 2016, o desmatamento aumentou 51% no mundo todo em comparação com o ano de 2015. Só na Amazônia a perda florestal foi três vezes maior. Um estudo publicado há dois meses na revista Nature por universidades francesas e britânicas indica que o planeta terá anos mais quentes do que a média entre 2018 e 2022. A análise leva em consideração o aquecimento global provocado pelo aumento da emissão de gases de efeito estufa e a variação natural das temperaturas.

Embora 193 países façam parte da Organização das Nações Unidas em torno do compromisso de trabalhar pela paz e pelo desenvolvimento mundial, apesar de instituições internacionais de ajuda humanitária e voluntários se dedicarem ao bem-estar comum, o respeito à dignidade humana encontra barreiras dentro de cada indivíduo moderno. Acumulamos conforto enquanto admitimos que outras pessoas durmam na rua, no frio e na chuva, no mesmo bairro ou cidade em que moramos.

A Humanidade não celebra nada em conjunto, como às vezes pensamos assistindo aos festejos de Ano Novo na Internet. Bilhões de pessoas estão esquecidas na própria miséria, sem voz. Metade da população sequer tem acesso à Internet, segundo o Fórum Econômico Mundial.

Em geral o estilo de vida que praticamos nos torna insensíveis quanto à necessidade imediata de pessoas como nós. A Internet, por exemplo, uma das grandes criações do século passado, aproxima aqueles que estão distantes mas seu uso excessivo causa depressão e isolamento social. A essência humana, no sentido primitivo da palavra, está em risco quando a dependência que temos dela continua a mesma.

Um povoado desprezível

Os moradores de Oberwil-Lieli preferiram pagar uma multa de 200 mil libras (R$ 1 milhão) do que cumprir a cota imposta pelo governo suíço de receber dez refugiados. Um povoado rico, um dos mais ricos da Europa, que escolhe em referendo, conscientemente, ignorar um grupo de pessoas desesperadas fugindo da guerra e da fome pode ser tranquilamente desprezado pela História. Há maus exemplos suficientes nos livros e seus habitantes, 14% deles milionários, se esqueceram que são seres humanos.

Os votantes que rejeitaram a acolhida (53%) têm medo que os imigrantes destruam aquilo que “trabalharam a vida toda para criar”, o belo povoado. Seus filhos não poderiam mais brincar na rua, disseram, com a presença de possíveis terroristas. Nem um palmo de terra de Oberwil-Lieli pertence mais aos seus habitantes do que a qualquer pessoa necessitada. Não no século 21, em um mundo globalizado de pessoas decentes onde não se restringe a imigração com base na cor da pele, religião ou procedência.

O trabalho árduo lhes trouxe riqueza material mas impediu o desenvolvimento da única habilidade social indispensável, a caridade. E o preconceito de mentes confusas condenou indivíduos honestos em busca de proteção e seus filhos, crianças mutiladas no corpo e na alma por minas e bombas.

O argumento do prefeito de Oberwil-Lieli foi ainda mais estúpido do que o da população preconceituosa: acolher os dez imigrantes incentivaria outras pessoas vivendo em zonas de conflito a atravessar o Mar Mediterrâneo em direção à Suíça. Certamente tem algum parentesco com o prefeito de São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Centenas de homens, mulheres, idosos e crianças morrem diariamente afogados e continuarão morrendo, muitos da mesma família. Arriscam a vida porque não há mais esperança do outro lado, permanecer não é uma opção.

Cem mil reais foi a multa estabelecida por cada vida humana rejeitada. Dinheiro suficiente para sustentar o pequeno grupo por pelo menos 1 ano e 4 meses, considerando um salário de R$ 6 mil, comum entre os trabalhadores suíços sem qualificação. Dez pessoas teriam uma noite de sono agradável depois de anos de sofrimento, talvez uma das crianças refugiadas crescesse como cidadã suíça e trouxesse ao continente europeu a coesão política que tanto precisa. Preferiram se manter isolados em vez de salvar outras vidas – hipocrisia.

Oberwil-Lieli é um povoado rico, limpo e organizado sem nada a acrescentar ao complexo mundo moderno, que luta para superar seus problemas, entre eles a imigração em massa, a maior desde a Segunda Guerra Mundial.

O primeiro passo para um mundo melhor

Admitir a necessidade urgente de contribuir para o bem-estar comum é o primeiro passo para um mundo melhor. O sentimento de que nós e os pobres e injustiçados espalhados pelos continentes pertencemos à mesma raça, humana, está tão escasso que conversar sobre isto torna, imediatamente, o mundo mais justo.

Enquanto existir alguém passando fome ou dormindo ao relento, em qualquer região da Terra, teremos fracassado como espécie; porque toda desigualdade não natural entre os seres humanos é uma aberração, possivelmente provocada por vantagens adquiridas através da formação educacional, herança patrimonial, ou pelo saldo da conta bancária. Parte importante da população mundial sequer possui conta bancária.

“Trabalhei noite e dia para conquistar casa, comida, e estabilidade financeira”, alega o cidadão honesto que foge da sua última responsabilidade: agir contra a pobreza ao redor, seja na vizinhança ou do outro lado do oceano. Defender a igualdade social como único pilar da existência, dever do homem e da mulher antes de ser papel de governos, derrubará injustiças onde existam unindo as nações em torno de uma democracia global realmente participativa.

Afinal, a estratégia adotada até agora para um mundo melhor, se é que ela existe, acumula seguidas derrotas. Desunidos mas econômica e mutuamente explorados, a felicidade é conquista distante embora tenham avançado a tecnologia, a medicina e a expectativa de vida de alguns povos. Curiosamente não abandonamos o processo errôneo de produção e consumo desenfreado, causador de danos irreversíveis ao meio ambiente no último século, para tentar algo diferente, como a prática da caridade no cotidiano. Longe de ser um apelo religioso, mas em prol da atrasada conversão da modernidade em qualidade de vida abrangente.

Qualquer ser vivo busca o mesmo que nós, sobrevivência. Quando o luxo individual adquire mais importância que a satisfação coletiva, inclusive dos miseráveis escravizados para a manutenção deste luxo, como os garimpeiros de pedras preciosas no continente africano, intencionalmente negamos nossa continuação. Se desigualdades existem há milênios, há bastante tempo erramos, maior é a obrigação de corrigir o rumo.

A lembrança de fazer parte de uma espécie animal que evolui apenas em comunhão consigo mesma, solução para as graves angústias da atualidade, chega a ofender algumas pessoas. Não se reconhecem como bichos. Preferem as ilusões ridículas, desprezíveis, descartáveis que veem nas vitrines das lojas, tentativa vã de fabricar e vender “felicidade”. O resgate da essência humana, que respeita os anseios básicos do instinto, entre eles a compaixão, traz o verdadeiro progresso.